O Barbeiro de Sevilha em S. Carlos

Ontem a sorte estava comigo e consegui um bilhete de última hora para o Barbeiro de Sevilha em S. Carlos. Mesmo tendo o preço dos bilhetes de última hora aumentado para o dobro, o rigor dos factos seja abonado, consegue ver-se ópera em Portugal por muito menos dinheiro do que em algumas capitais da Europa. Estou-me a lembrar, por exemplo, de uns 80 contos que me pediram para a plateia para uma Turandot do Covent Garden, há cerca de 5 anos atrás… Mas adiante!
Foi com a sensação de ter retrocedido à adolescência que entrei na sala setecentista para assistir a uma récita do Barbeiro de nacionalidade maioritariamente portuguesa. Foi como quando vi o mesmo barbeiro Fígaro, mas dessa feita na sequela de Mozart há largos anos atrás, com o luxuoso elenco nacional que incluía nomes como Elsa Saque, José Fardilha e Vaz de Carvalho (que me perdoem os que estou a omitir!). Mas é disto que eu gosto e tenho a certeza que é isto que o povo português quer ver, mais Portugueses no palco do S. Carlos! Foi então com este espírito de orgulho nacional que assisti ao 2º elenco desta produção, que contava com o Figaro Luís Rodrigues, o Conde Almaviva Mário Alves, a Berta Elvira Ferreira e o Fiorello Diogo Oliveira. As expectativas que levava comigo não ficaram de todo goradas, pois os cantores portugueses demonstraram estar à altura de medir forças com o restante elenco estrangeiro, sendo o seu único handicap (coisa que nem sequer ficou ali demonstrada!) a falta de oportunidades que o nosso país lhes propicia para se desenvolverem no seu trabalho. Os seus congéneres não-lusos não têm esse problema, por não serem portugueses estão, pelo menos, sempre garantidos por cá!
Individualizando um pouco: o Luís Rodrigues esteve no seu melhor! Moderou-se na cavatina, cantando-a de uma forma leve e tremendamente agradável, demonstrando grande maturidade perante um papel de extrema exigência que não se extingue naquela primeira prova de esforço. Uma nota altíssima para um dueto “Dunque io son” que, o rigor assim o exige, clarificou a minha opinião sobre Natalia Gravilan, uma Rosina que me tinha deixado com algumas dúvidas na sua cavatina. Mais uma vez neste dueto, assim como consistentemente ao longo do resto da noite, Luís Rodrigues deu mostras da estabilidade do seu Figaro. Quanto a Natalia Gravilan, conforme disse, foi-me convencendo. Se na famosa “Una voce poco fa” me deixou a leve impressão de que as frases de coloratura ascendente pecavam por terminações abruptas e pouco consistentes, esclareceu-me no dueto com o barbeiro e convenceu-me no rondó da Inutil Precauzione. É um mezzo com poderosíssimos agudos e deixou-me com a sensação de missão cumprida. Saltando para o tenor de serviço, o Conde Mário, confesso que prefiro ouvi-lo em papéis com menos coloratura. Dotado de um timbre lindíssimo e de uns agudos de invejar (já para não falar de uma comicidade que se patenteou no soldado bêbado e que o Don Alonso corroborou), é um tenor que brilha mais em frases musicais de maior lirismo e de legatto mais consistente do que o incluído nas páginas rossinianas. Ficou famoso entre as gentes do meio o seu admirável Tamino. Passando à repelente criada Berta, interpretada por uma generosa e cómica até-mais-não Elvira Ferreira (eu beijo o chão que esta mulher pisa!), apenas posso adicionar, pois o papel a mais não permite, que lamento vê-la relegada a um papel que lhe é inferior, quando ainda me ribomba na mente a Liù que cantou magnificamente neste mesmo palco há precisamente dois anos atrás, emoção que experimentei privilegiadamente do primeiro balcão do coro. É mais uma manifestação do que sofre o artista nacional por amor à arte que escolheu…
Quanto ao Don Bártolo Filippo Morace, não me convenceu em termos cénicos e vocalmente pareceu-me demasiado leve para um papel onde se espera um barítono consistente. Em contrapartida, o Don Basílio Enrico Iori surpreendeu-me com uma bela voz de baixo, se bem que cenicamente também tenha sido mediano. Quanto ao meu amigo Diogo, conforme eu já esperava, cumpriu com a brilhante voz com que a natureza o dotou o pouco exigente Fiorello. Anseio por vê-lo voar acima das nuvens em papéis dignos do cantor que ele é e que ainda virá a ser. Quanto ao coro masculino, pareceu-me carecer de volumetria sonora, aliás em vários momentos a massa vocal total de solistas e coro ficava subjugada ao peso de uma Orquestra Sinfónica Portuguesa dirigida por Jonathan Webb, peso esse que me parecia algo inconciliável com as leves frases de coloratura rossinianas ou de rápido débito de letra.
No geral, a encenação pareceu-me roçar a loucura total, quase infantil, mas humildemente penso que devia ser essa a intenção de Emilio Sagi, num trabalho que, posso afirmar, até me agradou. Os meus parabéns à “consultoria” de Sevilhanas, que fez com que os cantores conseguissem ludibriar os mais incautos com os seus alegados dotes para a dança! A juntar ao ramalhete visual, a monumental e escultural cenografia volante de Llorenç Corbella, manuseada com graça pelos bailarinos, os figurinos interessantes de Renata Schussheim e o convincente desenho de luzes de Eduardo Bravo (Bravo pela chuva!).
Em suma, uma nota alta ao Teatro Nacional de S. Carlos pela récita maioritariamente preenchida por vozes nacionais, que apenas pecou por não ser portuguesa na íntegra! Mas foi um começo auspicioso…

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