"Rigoletto" em S. Carlos

Ontem fui a S. Carlos... Soa bem dizer isto, parece que nos transporta para um tempo do qual nenhum de nós se recorda, mas que de alguma forma, nos é familiar! Enfim, não me permitindo a mais divagações, fui a S. Carlos assistir à co-produção TNSC-ABAO (Bilbau) da ópera de Verdi, Rigoletto. Mais uma vez escolhi a récita de estreia do 2º elenco, ou não fosse este o agrupamento que contava com mais cantores portugueses (eu e a minha velha tendência para o protecionismo!).

E assim me dirigi para o camarote 67 para assistir uma vez mais à história do mal-afortunado corcunda cuja sede de vingança leva à perdição da própria filha, a pobre jovem que se deixa matar por um homem que não vale um fio de cabelo dela. Primeiro, os aspectos técnicos: Fiquei impressionada, para começo de conversa, com a encenação/coreografia de, respectivamente, Emilio Sagi e Nuria Castejón. Arrojada, sedutora, erótica, sem falsos pudores, retratando com veracidade o real teor sórdido da história que ali se urde. Achei particularmente curioso o pormenor de existir um ou dois bailarinos vestidos de cortesãs, no meio de um grupo de bailarinas, dando um ar decadente q.b. à “orgia” (segundo Monterrone) que ali se experienciava. Gostei, francamente. Quanto à cenografia de Ricardo Sánchez Cuerda, aparentemente simples, mas interessante, revelou-se mais complexa do que parecia na hora de a alterar. Duas das modificações foram feitas a pano aberto e foram tão longas (propositadamente ou não) que deu sempre aquela sensação de “alguma coisa está a correr mal, por isso estão a levar tanto tempo”. O palco extremamente inclinado deveria dar uma sensação de vertigem aos cantores, mas o efeito final, com as luzes de Eduardo Bravo, ficou bom. Os figurinos de Miguel Crespi, totalmente condizentes com a cenografia, eram bons, sendo particularmente do meu agrado os fatos das bailarinas cortesãs e uma proliferação de ausência de sapatos femininos. Quanto à direcção musical de Alexander Polianitchko, como acontece vezes demais neste teatro, a orquestra sobrepôs-se aos cantores (coro inclusivé) em alguns momentos de fortissimo. Algumas peças pareceram-me carecer de ritmo, tendo sido executadas demasiado lentamente, nomeadamente o primeiro dueto de Rigoletto com a Gilda (que é o que me saltou ao ouvido mais preementemente). Mas são as opções do maestro, cabe-nos apreciar ou não.

E agora, os cantores, pela ordem de protagonismo que se lhes dá tradicionalmente: O nosso bobo de serviço, um Rigoletto que nos chega do remoto Oriente, Leo An, foi simplesmente soberbo, numa execução sem falhas, expressiva, arrepiante, hiper-impressionante para os seus curtos 29 anos de idade.

O Duque de Mântua brasileiro, Richard Bauer, deixou-me francamente desiludida. Ainda me custa a acreditar como é possível ter ao nível de um teatro nacional um tenor a cantar daquela maneira. Não quero com isto dizer que cantasse mal ou que tivesse um timbre feio, não... O que eu quero dizer é que deixa a sensação de um papel mal maturado, ainda em aprendizagem, ao qual ainda não consegue conferir a agilidade e a segurança que a exigência de um Duque de Mântua tem. Não será por isso de estranhar a ausência de aplausos em todas as suas árias e até os apupos nos agradecimentos finais. É pena.

Carla Caramujo, a primeira portuguesa a mencionar, estreou-se em S. Carlos e logo com a Gilda. E fê-lo magnificamente. A direcção do teatro fez bem em confiar-lhe o papel da virgem seduzida que morre para salvar o traidor que ama, pois foi com extrema delicadeza, segurança e doçura que ela o interpretou, com uma musicalidade e execução maravilhosas.

O Sparafucile Vadim Lynkovskiy teve uma nota de humor que normalmente não se encontra neste papel negro e obscuro. Gostei tanto dessa nota como daquele grave que ele dá no final do dueto com o Rigoletto, que se fez ouvir lindamente no teatro. Voz bonita, cheia e interpretação fantástica.

A cigana Maddalena, irmã do assassino, Malgorzata Walewska, era uma mulher cuja envergadura corporal e vocal estavam perfeitas para o papel. Sedutora e erótica, senhora de uma voz potentíssima que me permitiu, pela primeira vez, saber o que canta o mezzo-soprano no famoso quarteto, foi extraordinária.

Mário João Alves fez um Borsa discreto, mas presente. O papel também não se presta a mais. Mais em evidência estiveram Michael Vier no Marullo e o meu amigo Diogo Oliveira no Conde de Ceprano. Foi divertido vê-lo a fazer um papel que nada tem a ver com a sua natureza pacata. Fê-lo, evidentemente, como faz tudo, com excelência e muitíssimo bem cantado.

Outra portuguesa do elenco, Susana Teixeira, fez uma Giovanna claramente interesseira e até algo debochada, em vez daquela coisa que não se percebe bem que normalmente aparece por esses palcos. Uma nota alta para um pequeno papel, cujos movimentos cénicos, em particular a interacção com o Duque, me trouxeram um sorriso aos lábios.

Luis Rodrigues impressionou-me com o seu Monterrone. Foi pungente, ameaçador e tudo o que um Monterrone tem que ser. Muitíssimo bem.

Em termos de nota de rodapé, uma menção aos papéis mais curtos da ópera, todos interpretados por portugueses, que foram a Condessa de Ceprano, magnificamente vestida, interpretado por Isabel Biú, o pagem, cantado pela minha amiga Madalena Paiva Boléo e o Oficial da Corte, cantado por Frederico Santiago.

Em suma, poderia ter sido uma noite de ópera de grande qualidade, não fora o facto de o tenor não ter correspondido às expectativas que este papel sempre eleva. Mas, segundo me constou, a noite de estreia do 1º elenco foi ainda pior, pois para além de apupos, houve pateada. É bom que se ponha rapidamente de lado a mentalidade de que o público português consome o que se lhe dá, sob pena de virmos a assistir a mais cenas lastimáveis como estas. Qualidade, meus senhores, qualidade! E de preferência, nacional!...

Comentários